Pós-reportagem a partir de um vídeo no YouTube
Estamos em abril de 1978. João Gilberto ensaia o show que fará dali a algumas horas no Teatro Castro Alves, em Salvador. Com os pés num banquinho, João parece tranquilo. Calça azul e camisa de manga comprida da mesma cor num tom mais claro, conversa com Miúcha, sua ex-mulher. No fundo do teatro, técnicos de som trocam impressões. João maneia a cabeça. A cantora se aproxima. “Não ouço nem o grave nem o agudo”, se queixa. Miúcha abre os braços, como se estivesse indicando para onde as notas devem reverberar. O cantor faz um muxoxo e começa a tocar. ‘Dá licença, dá licença, meu senhor/Dá licença...’ Logo interrompe a música de Denis Brean, o compositor que, segundo ele, fez uma música linda sobre a Bahia sem nunca ter estado lá. “Voltou com o barulho!”, reclama, fazendo círculo com uma das mãos. Dá uma sentença aos técnicos, que estão no fundo do teatro. “Depois de qualquer som, reverbera e distorce”, vaticina. “Uen, uen, uen”, João tenta reproduzir o que só o seu ouvido absoluto parece notar. “Não é esse o som. É a mesma história do braço da guitarra, o braço, com o tempo... Mentira, o braço é duro mesmo. Não é tanto. Eu sei que sentado melhora”.
Atento a tudo e a todos, João responde a Manoel Poladian, empresário e produtor do show. “Poladian, o som é bom, eu sei, tem qualidade, eu tô vendo. Eu tenho medo, eu tenho...”, gagueja. “Talvez tenha demais esse negócio”, diz apontando para o teto. Miúcha aponta para o chão, tentando identificar o que pode estar interferindo nos acordes tirados pelo ex-marido. “Não quer mudar um pouco a posição das caixas mandando pra lá? Porque às vezes bate num lugar... Uma movidazinha já pode dar uma situação”, diz João, tentando uma solução. “Poladian, outro microfone. Isso funciona à beça”, dá a dica, com paciência. “Não estou dizendo que seja ruim, mas de acordo com o tudo...”, olha para Miúcha. ‘Dá licença, dá licença, meu senhor’, volta a cantar. “Gostei da voz aí. Deixa aí”, recomenda. ‘Dá licença, dá licença pra ioiô...’, continua. “Conserve isso, por favor”, pede. ‘Eu sou o amante da gostosa Bahia, porém/Pra saber seus segredos serei baiano também/Dá licença de gostar um pouquinho só/A Bahia eu não vou roubar, tem dó/ E já disse o poeta que terra mais linda não há/Isso é velho do tempo em que já se escrevia Bahia com H’, canta com desenvoltura. “Pode ser um pouquinho de grave na voz”, indica. Ele toca com toda naturalidade e recomenda. “Sem deixar embolar”, alerta. Enquanto João se solta, produtores conversam no corredor central do teatro. Mas isso está longe de atrapalhar o cantor. Sabe que todos estão lá para buscar a perfeição tão cara a ele. João dá os últimos acordes, balança as pernas como as borboletas fazem com as asas e avisa. “Agora vou ver de outro jeito, de outro tipo, pra ver como está”, avisa.
Pigarreia e balança as pernas de novo. Ajeita o microfone e ataca de Janet de Almeida. ‘Há quem sambe muito bem/há quem sambe muito mal’, confunde a letra. “Gosto muito da voz aí”, observa. ‘É só no samba que sinto prazer...’ “Clareia um pouco a voz”, pede. “Clareia a voz um pouco”, repete. ‘Há quem sambe/Por ver os outros sambar...’ “Bom isso”, sorri João. ‘Ééé, só no samba sinto prazer, a voz está booooa’, canta, mudando esse último trecho para elogiar os técnicos. Agora é a vez de um ritmo mais lento, o ritmo dos irmãos Gershwin. ‘It’s wonderful, marvellous...’, começa. E assim leva a canção até o final, sem se incomodar com a movimentação dos contrarregras, que carregam fios elétricos de um lado para outro. Poladian se aproxima e cochicha algo com João. “As palavras têm que vir com clareza”, responde o cantor. “A guitarra tá soando bem aí? Eu tenho uma boa impressão daqui”, João observa.
A música de agora é uma parceria de seu ex-cunhado com Tom Jobim. Chamava-se ‘Zíngaro’ antes de ganhar letra de Chico Buarque. ‘Já conheço os passos dessa estrada/Sei que não vai dar em nada/Seus segredos sei de cor’. Sem parar de tocar, reclama, com calma. “O violão não veio, né?” Poladian fica de frente para João, que agora se impacienta. “Não! Não é este violão que estou falando. Um que eu pedi aí”. O empresário parece dizer que o instrumento vai chegar. “Mas sem provar, como é que eu vou usar o violão? É outro som, outro balanço. Era pra eu provar”, diz, num lamento. Miúcha, antevendo uma possível crise, se aproxima. “Tocar com esse... é brincadeira. Ó os dedos, marca mesmo”, se queixa, mostrando as mãos para a ex-mulher. Agora ele passa orientações. Miúcha ouve e desce do palco. Vai até a mesa de som. “Heloisa – João não chama a mulher pelo apelido – os comecíssimos das palavras. Pra já não ser só á”.
Logo emenda ‘Estate’, música italiana desconhecida até se tornar um clássico na voz dele. Todos estão ocupados. Menos um contrarregra, um senhor de cabelos brancos, pé pousado no praticável onde João toca. Siderado, nem se mexe. “E o violão? Violão tá bom?”, pergunta o cantor. E continua testando o som. Num dos acordes, lembra de um conterrâneo amigo. “Que beleza o Caetano. Nem um retratinho dele trouxeram pra mim”, lamenta. Depois da música, João Gilberto recomenda que se marque na mesa os níveis dos sons nas caixas. “Tudo o que for de número, guitarra, violão, marque num papelzinho”. Parece satisfeito. Pergunta a Poladian o nome do técnico do som. “Salomão, marcou tudo aí, né? Vou cantar mais uma canção pra ver se funciona nesse sistema”. Agora é a vez de ‘Wave’, hit de Tom Jobim dos anos 1970. ‘Vou te contar/Os olhos já não podem ver/Coisas que só o coração pode entender’, começa. “Heloisa, a segunda parte dessa música”, se dirige a Miúcha, que está ao lado de Salomão, no fundo do teatro. ‘São coisas lindas que eu tenho pra te dar’. Ele agora sorri, balançando com leveza a cabeça. “Eu gosto disso, eu gosto disso”, repete. Manoel Poladian se dirige a ele. O ensaio está acabando. “Venha cá, Salomão, você subiu um pouquinho o volume, não foi?” pergunta. Salomão confirma. “Da voz? Eu senti qualquer coisa assim. Mas continua funcionando?” Miúcha pega a bolsa. “Dentro desse pouquinho que você aumentou, deixa eu fazer o pedaço de uma música”, pede, com toda a delicadeza. ‘Triste’, mais um clássico de Tom. A ex-mulher, cansada da função de produtora, se senta. Depois de 22 minutos, ele encerra o ensaio. “No final dá certo. A primeira que você faz é mecânica. Depois... Salomão, bom, eu vou lá,” anuncia. Entrega o violão ao contrarregra, o mesmo que, poucos minutos antes, estava petrificado pela música de João. Salomão ainda ouviria os últimos ajustes. Ainda daria tratos no perfeccionismo do gênio.
Vídeo: Mestre João Gilberto no TCA em 1979
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