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O HOMEM GENTIL


    No início de 2006, Eduardo Vinicius de Souza, o maior colecionador de camisas do Flamengo, me procurou. Queria um favor: uma cópia do ‘Caso Verdade’, programa da TV Globo que contava a história de um garoto da Cruzada São Sebastião, conjunto de prédios residenciais para a população carente no Leblon, zona sul do Rio de Janeiro. Edu comentou que, num encontro com Adílio, o craque revelou, muito triste, que as imagens da fita VHS onde tinha gravado o programa já estavam muito ruins.

    Com algum contato no Projac – o programa estava lá, em rolo de filme – não foi difícil conseguir. “Está aqui na minha mão”, disse a Edu, três dias depois. “Agora é só buscar”. Dez minutos mais tarde, Edu voltou a me ligar. “O Adílio faz questão de te agradecer pessoalmente”, disse. Declinei do convite. O que conversar com ele? Mas, num outro telefonema, Edu disse que o craque insistia. Convencido, fomos encontrá-lo num restaurante da Barra da Tijuca.

    Ao encontrá-lo, fui logo avisando. “Falei pro Edu que não tinha o que conversar com você. Afinal de contas, sou Botafogo e aquela goleada que vocês deram no meu time doeu muito. Mas eu vim pra agradecer pelo carinho que teve comigo quando fui visitar a seleção no Hotel Paineiras”, disse. Adílio, que não era de falar muito, sorriu, timidamente. E foi com esse sorriso tímido que me fez uma revelação. “Sabe quem foi o culpado pelos 6 a 0?”, perguntou. “Eu sei. Foi do Andrade, botafoguense na infância”, respondi. “Errou – disse, rindo – foi o Perivaldo! Nós somos muito amigos, sabe? Quando peguei a bola na esquerda, avancei e parei na sua frente. E ele: ‘Ô neguinho, não fode, porra! Para de babaquice, Não vem pra cima de mim que eu tô morto de cansado’. Obedeci e passei a bola pro lado. Essa obediência acabou no nosso sexto gol”, revelou Adílio.

    A gentileza de Adílio impediu que a conversa girasse em torno do Flamengo. Com esse pacto, quis saber dele por que Telê Santana não o levou para a Copa da Espanha. “Isso você tem que perguntar pra ele”, disse, balançando os ombros, autor de um dos gols mais belos que vi no Maracanã. “Só mesmo você, Adílio, poderia encontrar o Junior naquele espaço. Os mortais não enxergariam o que você enxergou”, elogiei. O craque da Cruzada sorriu com o canto da boca.

    Hoje, Adílio foi fazer companhia a Eduardo Vinicius de Souza. Dois grandes rubro-negros que deixam saudades.

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