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O ENCONTRO DE BETH E IRENE

    Como explicar a coincidência de saber da perda de mulheres fortes num mesmo dia? Hoje, logo pela manhã, experimentei essa sensação. Se, mesmo cristão, ainda não consigo encarar a morte como algo natural, há em mim um vago consolo de pensar em Irene e Beth e vir, não o choro, mas um sorriso.

    Beth e Irene não se conheceram. Mas, parecidas que eram, tenho certeza que nasceria ali uma grande amizade. Porque tinham muito em comum. Além do sorriso fácil, mas paradoxalmente tímido, elas sabiam agregar. Não existia quem não quisesse estar ao lado delas. Irene e Beth, Beth e Irene, transmitiam paz, mesmo lutadoras que eram.

    Irene amou Hélcio Gama, mulato alto e forte. Mestre de judô, Hélcio apostava na disciplina, que deixou como legado para seus inúmeros seguidores. Golpeada pela morte do marido - um duro ippon na dureza do dojô - Irene focou na educação para levar a vida adiante com os filhos, sempre com seu jeito doce.

    A última vez que vi Beth ela lutava contra um câncer. Fiquei surpreso com o otimismo dela, que não se queixava das agruras do destino, da falta de sorte. Porque sabia ela que sua luta não tinha terminado. Os desvalidos precisavam de sua ajuda. Ajuda que ela tornava realidade, em governos de diversas cores. Porque, para Beth, não importava partido, não importava ideologia. O que importava para Beth era atacar as mazelas de um país tão injusto.

    Hoje mais cedo, mandei mensagem para Miriam, irmã de Beth. Disse que queria muito bem a Beth. “E ela também a você!”, me respondeu. Num telefonema, agora há pouco, Paulo André, um amigo que mais parece irmão que amigo,  me revelou, prendendo o choro. “Ela sempre perguntava  por você, PM. Ela sempre se preocupava com você”. Do outro lado da linha, foi difícil prender o choro.

    Pode soar falso, mas não sou homem de orgulho. Mas peço permissão para cometer esse pecado. Há uma frase de Millôr Fernandes que diz: “Melhor do que ser querido é a certeza de ter sido querido”. Como foi bom ter sido querido por Beth Leitão. Como foi bom ter sido querido por Irene da Gama e Silva. Se há vida depois daqui, elas vão se encontrar.

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