Pós-reportagem a partir de um vídeo no You Tube
Vinicius de Moraes ainda está no palco quando surge João Gilberto, blazer azul marinho, camisa branca e calça cinza claro. Eles se cumprimentam. O contato dura pouco mais de 20 segundos. Com o ouvido aguçado, o cantor percebe zoadas no fundo do Teatro Castro Alves. O poeta se retira e João se senta no banquinho e, com nenhum sorriso, agradece. Ouve-se vaias. “Espera aí, um momentinho”, fala, com a mão espalmada. “Eu estou chegando de uma viagem muito longa, cansado, sem dormir há um mês”, explica um tenso João. As vaias aumentam. Já sem a paciência que ele exerceu sem limites no ensaio, dá o seu recado, o primeiro embate com o público, que mais lembraria o round de uma luta de boxe, seu esporte preferido. “Peraí, ôôô. Não, não, não. Não faz isso que eu vou embora, hein?”, ameaça. Ferido, continua. “Escuta, eu ouvi uns ‘uuuus’ aí”, diz, apontando para trás. “Esse aí é o poeta Vinicius de Moraes, entende? Do Brasil! Respeito e admiração, porque aqui é a Bahia, terra primeira. É o exemplo”, declara, ganhando o primeiro confronto. “Sem uh, porque esse uh é um idiota que está fazendo. Isso não é a Bahia”, prossegue, arrancando aplausos. “Tá entendendo? A Bahia é esta!” Ele se ajeita no banquinho e os desafetos parecem não querer deixá-lo em paz. “Uh, uh, uh, tem que ser um imbecil autêntico”. Ele agora desabafa. “Bom, cheguei cansado e tudo o mais. Difícil tudo me organizar pra estar aqui. Estou cansado. Estou fazendo isso porque é pra minha gente. Minha vida foi isso. Dada a isso tudo”. Os apupos continuam. ”Quem é esse besta? Vejam que é esse idiota e olhem pra casa dele, que ele não deve ter força nenhuma fazendo uh-uh-uh”, reclama.
Agora ele parece pronto. Alinha o fio do braço do pedestal. Muito sincero, revela um bastidor. “Minha calça rasgou. Não vou mostrar porque fica chato,” abrindo as pernas. São exatos 31 segundos até João Gilberto dedilhar as primeiras notas de ‘Eu vim da Bahia’. Quando acaba de cantar a música do xará e amigo Gilberto Gil, João continua interagindo com a plateia. “Eu esqueci de dizer que tive gripe há dois dias, febre, o olho ardendo. Qualquer coisa na voz, perdão”, avisa. A hora agora é de cantar Tom Jobim. No meio de ‘Triste’, em busca do som perfeito, João pede a Salomão, que está na mesa de som, sem interromper a interpretação. “Pode abrir um pouca a voz?” Em seguida, já nos acordes iniciais, ‘Chega de Saudade’, a música-símbolo da Bossa Nova, é recebida por aplausos entusiasmados. Depois de cantar, João está visivelmente contrariado. Balança a cabeça, mas procura manter a serenidade. “Por favor, isso é uma coisa para nós todos. Eu tô achando o som como no ensaio. A gente ensaiou muitas horas aqui para (ter) este problema. Ficou acertado, mas agora o som não é aberto. Um ôôô, um barulho assim no meio. Será que...? Isso melhoraria tudo pra todo mundo assim”, pede. “Tem um õõõ aqui que não para”, diz, apontando para uma caixa à frente dele. Assobia, tentando reproduzir o barulho que o incomoda. “Tem um barulho constante, quer dizer, tudo será sobre isso. Isso tudo nós provamos para não acontecer isto”. João agora se dirige à turma do gargarejo. “Isso é ruim pra você se guiar aqui. Porque tudo fica õõn. Todo som fica... Esse negócio que não para”, reclama. “Eu quero fazer o melhor pra vocês, pra vocês sentirem. “Eu escrevi um negócio aqui. Eu limitei um pouco o programa porque estou sem dormir há um mês e aqui foi essa tourada...” Depois de pouco mais de um minuto, o algoz de João volta a atacar com vaias. “Isso deve ser um total imbecil”. Depois da fala, é aplaudido. E retribui com aplausos. “A namorada não gosta. Ninguém gosta dele. Faça isso pra ver se ele a gosta de você. Bobalhão”. O show já está parado dois minutos. “Então limitei o programa porque a mente cansada, eu nem posso me lembrar de todas as canções. Eu lutei pra relaxar, pra dormir, pra viver com vocês. Isso me custou chegar até aqui. Muita estrada. Isso é muito importante pra mim. Agora eu não falo mais de você não, bobo”, encerra a conversa.
João agora se concentra na letra densa de Chico Buarque, que deu roupa nova a ‘Zíngaro’, fazendo surgir ‘Retrato em Branco e Preto’. Depois da interpretação impecável da parceria de seu ex-cunhado com Tom Jobim, o gênio agora visita Janet de Almeida com ‘Eu sambo mesmo’. Agora chegou a hora de ‘It’s Wonderful’, o clássico dos irmãos Gershwin, até aquela altura a mais aplaudida. Depois das batalhas com seu desafeto, os contratempos são coisa do passado. A música seguinte também é estrangeira, mas ganhou letra em português de Haroldo Barbosa e Geraldo Jacques e virou ‘Tintim por tintim’. O cantor agora fita o fundo do violão, como se esperasse dele um sorriso de agradecimento. Passeando pelo mundo, João canta ‘Estate’, que ficou famosa só por sua voz. Em ‘Wave’, a única queixa com o público depois do imbróglio. “Sem assobio, por favor”, pede. ‘Brigas, nunca mais’, de Tom e Vinicius, que canta desde sempre, é a última das dez músicas do show. Ele se despede. Mas não por muito tempo. O bis é de autoria de um de seus compositores preferidos, Dorival Caymmi. E lá vem ele dizendo ‘bom sujeito não é/é ruim da cabeça/ou doente do pé’. “Isso é importante,” frisa João, depois do verso.
A plateia aplaude. João sai calmamente. Da coxia, da bata branca, surge Miúcha, que vai receber o ex-marido com o maior dos sorrisos, a sua marca. Em poucos segundos, um coro. “Volta, volta, volta”, chamam seus conterrâneos. Forma-se em torno de João uma roda. Miúcha faz sinal com um indicador, provavelmente pede mais uma música. Manoel Poladian, empresário e produtor do show, só observa. Os pedidos se intensificam, cada vez mais. João Gilberto volta ao palco para mais um bis. Dirige-se ao seu banquinho dedilhando o violão. “Cadê o som?”, pergunta, batendo com um dedo o microfone. “Cadê o... ah, chegou”, diz, já com cara de tédio. ‘Garota de Ipanema’ levanta o público. Nos últimos acordes, João parece estar em transe, olhar fixo para o teto do teatro. Fecha levemente os olhos e sorri.
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