Pós-reportagem a partir de um vídeo no YouTube
“Eu vou cantar a
primeira música, uma homenagem direta a vocês que resistiram bravamente”, disse
um sorridente João Gilberto. Naquele domingo, 5 de julho de 1983, ele subia, já
alta a madrugada, num palco de madeira de 10 metros de altura por 20 de
largura. Mas não por culpa sua. Fortes chuvas transformaram num charco os
acessos à Fazenda Santa Virgínia, em Iacanga, interior paulista, a 380
quilômetros da capital. Os artistas ainda chegavam ao local. Com esses percalços,
o começo do III Festival de Águas Claras teve que ser adiado por algumas horas.
Nenhum show começaria mais na hora. Reza a lenda que, para chegar até lá, o
próprio João conseguiu um Fusca em Bauru e, ao volante, encarou o lamaçal das
estradas. Daquela vez, pelo menos, ele não era o responsável pelo atraso.
A fama de João Gilberto, tido como excêntrico e, sobretudo,
exigente, preocupava a produção. A começar por uma exigência: um microfone
importado. Mas isso logo seria esquecido. João usaria o mesmo equipamento de
som do show de Fagner, que deixara o palco minutos antes. O público, na sua
grande maioria, era de jovens nascidos quando a Bossa Nova engatinhava. Por
isso, os produtores pediam, à boca miúda, para que João fosse recebido com
muito carinho. O cuidado fazia sentido. O dono do ouvido mais absoluto do
Brasil - capaz de identificar notas musicais em pingos de chuva que caiam no
capô de seu carro - exigia silêncio de sepultura em suas apresentações.
Calça comprida cinza, pulôver azul e cachecol vermelho para
espantar o frio intenso, João repete meia dúzia de vezes os acordes iniciais de
‘Sandália de prata - Isto aqui o que é’, de Ary Barroso. Quer retardar o início
da música ao máximo. Acredita que, assim, a plateia sossega. Sai da frente”,
gritam uns. Outros, tensos com um possível estresse do cantor, respondem ‘‘Cala
a boca!”. “Pssssssiuuu!”, João repreende a plateia, sem se alterar. Está
superado o primeiro obstáculo. Os produtores respiram aliviados. O momento é
especial. João faz seu primeiro show ao ar livre. Nas coxias, conterrâneos de
João, como Paulinho Boca de Cantor e Moraes Moreira, estão visivelmente
emocionados. Reina um silêncio absoluto. Até mesmo os passarinhos não dão o ar
de sua graça. Deixam pra depois seus sons, tão comuns no amanhecer. João canta
a música quatro vezes, concentradíssimo, como se buscasse a perfeição,
obsessivamente. Depois de cinco minutos e meio, a plateia, anda tímida,
aplaude.
Passado o primeiro número, nada como uma composição que
todos conhecem. Original como sempre foi, João não se cansa de inovar. Não
começa a música mais famosa de Tom Jobim e Vinicius de Moraes pelo começo. ’Ah,
por que estou tão sozinho?/Ah, por que tudo é tão triste?/Ah, a beleza que
existe/A beleza que não é só minha/Que também passa sozinha/Ah, se ela soubesse
que quando ela passa/O mundo sorrindo se enche de graça/E fica mais mais lindo
por causa do amor’ , canta. Não passa
muito tempo e muitos ensaiam palmas bem ritmadas, algo raro em shows de João.
Quando a plateia começa a cantar, João balança a cabeça e sorri. O gênio parece
aprovar a afinação. O sorriso tímido é o sinal de que está gostando. Agora ele
apenas acompanha. Pronto, começa o namoro.
Na próxima canção, o que parecia namoro vira casamento. Quem
está ali verá agora João com outro coração.
Em ‘Saudosa Maloca’, João se mantém fiel à letra, pronunciando as
palavras com muitos erros. Protegidos com toucas, ponchos, capotes e
cobertores, os novos fãs logo percebem na escolha da música um carinho de João
com o maior dos compositores paulistas. E cantam o drama da turma de Joca e
Matogrosso a plenos pulmões.
Depois do clássico de Adoniran Barbosa, é a vez de
‘Corcovado’, que a plateia ouve em silêncio quase até o final. Um ou outro mais
empolgado grita um viva, um bravo, mesmo sabendo que quem está ali, no palco,
detesta barulho. João viaja agora ao seu Nordeste. E com ‘Baião’, de Humberto
Teixeira e Luiz Gonzaga que o cantor volta às origens, para espanto da
audiência. Ela canta e João sorri. “É isso aí, João!”, grita um. “Muito bom!”,
aprova outro. O casamento de João Gilberto com um público tão improvável está
consolidado. Aplausos e o cantor dedilha o violão. Com ‘A Primeira Vez’, de
Bide e Marçal, uma prova de como João é capaz de transformar um samba. Em mais
um sucesso de Tom Jobim, o gênio se limita a acompanhar a voz do povo, que
canta ‘Wave’ na maior educação. Ao final, palmas e muita gritaria.
Já se respira um ambiente leve. No começo do festival, o
clima não era dos melhores. Ainda sob uma ditadura, branda, mas ainda assim uma
ditadura, temia-se por protestos. Quem está ali, na sua grande maioria, não
compactua com o regime. ‘Aquarela do Brasil’ soa naquelas circunstâncias como
um hino nacional informal. O segundo hino, dessa vez hino da bossa nova, vem a
seguir. Não à toa a plateia faz coro de ‘Chega de Saudade’, desde o início.
João não se incomoda. Com o dia clareando, hippies circulam entre as barracas
armadas do lado do palco, mais uma música que marcou o início da carreira de
João, recém-chegado de Juazeiro, ‘Desafinado’. Entre os versos. Ele inventa
fraseados. Os fãs aproveitam a deixa e cantam, cantam, cantam. “Mais um, mais
um, mais um!”, gritam os jovens, como se estivessem num estádio de futebol. Os
produtores não precisam nem de dez segundos para convencê-lo para o bis. Ele
volta. Concentrado, dá os primeiros acordes de ‘O pato’, atendendo pedidos dos
fiéis resistentes, a quem ele agradeceu lá, bem no comecinho. E é com a letra
simplória da música que João encerra o show que, até ali, ele considera o
melhor show que fez na vida.
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